Quem garante que essa mistura do quem se é com aquele que se gostaria de ser não leve o sujeito a se perder do seu próprio eu?
Este texto tem a pretensão de refletir sobre o metaverso (tema da moda) e o que isso tem a ver com um conceito psicanalítico: o Ideal do Eu, que permite ter alguma dimensão de como as pessoas se tornam o objeto para outro.
Metaverso é uma ideia já tratada em 1992 no livro Snow Crash (Nevasca) e segundo Radfahrer, Professor de Comunicação Digital da Escola de Comunicações e Artes da USP (programa Metrópole exibido em 09/11/21): Metaverso é um termo razoavelmente antigo, é um termo da década de 1960 ou 1970 e veio da ficção científica, um pouco antes da origem de termos como matrix, ciberespaço. Esse termo diz respeito ao ambiente virtual onde se pode controlar todos os elementos dele.
No “ambiente” da pessoa, há na mente uma instância, um lugar no imaginário onde se poderia ser amado(a), e se refere àquilo que a pessoa gostaria de ter sido ou que os outros gostariam que a pessoa se tornasse. Pai e mãe têm participação nisso e querem as qualidades positivas todas para os filhos e filhas, que podem tentar se ajustar a essa demanda.
Freud (2011/1921 p. 96): Há sempre uma sensação de triunfo quando algo no Eu coincide com o ideal do Eu. Também o sentimento de culpa (e o sentimento de inferioridade) pode ser entendido como expressão da tensão entre Eu e ideal.
O metaverso oferece uma maneira para composição de um avatar. O ambiente virtual coletivo hiper-realista expõe vertiginosamente o eu criado para ser o mais notável. O dinheiro será a chave para se manter o status do avatar divino.
Os contos de fada e a mitologia tentaram e fizeram o papel do teletransporte para incorporação de personagens internos no campo da fantasia (subjetivo) e agora, com o metaverso, pode se materializar o meta-humano. Será que Zeus, o soberano do Olimpo, poderá vir a ser cobiçado por meio dessa nova abertura tecnológica?
Mas a questão está em fusionar a identidade. Quem garante que essa mistura do quem se é com aquele que se gostaria de ser não leve o sujeito a se perder do seu próprio eu? Metapsicótico ou Metaneurótico?
A vida é dura, traz dores, sensações de vazio e se faz necessária a ludicidade, jogos para suportar tanto realismo. Porém, se for a qualquer custo, pode ser violento. Green (2017, p. 191): O que é projetado não está localizado em nenhum lugar preciso, mas se infiltra no espaço ambiente, dando-lhe a tonalidade afetiva difusa que é característica da vivência paranóica.
Corre-se o risco de uma deformação interna.
Cervantes (2016, p. 1168): Se há um traço que marca a personalidade de Dom Quixote é o da defesa incondicional que o herói cervantino faz da liberdade. O ponto essencial do seu programa cavaleiresco é a ética da honra, que se centra na defesa da liberdade individual.
O Louvável Dom Quixote De La Mancha vai além, apregoando tão bonito viver e nobre realismo.
Que a liberdade não seja castrada e que a mente seja serena tomando cuidado para não se “Meteremversos” e, assim, criando um Eu sem IDEAL, futuro hoje tão aclamado por Mark Zuckerberg, que esquece os perigos que tal tecnologia pode apresentar arriscando o ser humano a romper com a beleza de ser simplesmente quem se é.
Referências
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. [tradução Martha Gambini]. São Paulo: Martin Claret, 2016. Edição Especial.
FACEBOOK anuncia criação do metaverso, realidade paralela e virtual. Cultura Uol, São Paulo, 01 de nov. de 2021. Disponível em:
FREUD, Sigmund (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In Obras completas, volume 15: Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos (1920-1923) [tradução Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921).
GREEN, André. A loucura privada. [tradução Viscondes de Castilho e Azevedo]. São Paulo: Escuta, 2017.
GUANAES, Lucas. Metaverso. Cultura Uol, São Paulo, 09 de nov. de 2021. Disponível em:
Crédito da imagem: “Mãe D’Agua”, Tarsila do Amaral.