Considerações sobre a literatura no processo psíquico

“Ah, como uma página que nos apraz pode fazer-nos viver!” (Gaston Bachelard)

por Renata Temps e Miriam Ferrari

Quando falamos sobre literatura e o ato de ler, dialogamos diretamente com o autor que nos aponta, por meio de uma descrição talentosa, o encantador e prazeroso ato de ler: “Sem uma total simpatia de leitura, por que ler?” Bachelard (2003, p.200), diz: E, quando entramos realmente no devaneio do livro, como parar de ler?

Como Bachelard, entendemos a experiência literária como o diálogo que se estabelece entre leitor e livro, a vez e a voz se fazendo presentes. Esse ato de ler oferece para vida um colorido, um tom e um ritmo, que proporciona uma viagem num universo particular de sensações e experiências que se entre cruzam em busca de uma liberdade de ser, liberdade de ser o que se quer. Experimentar coisas por meio das ideias daquilo que pensaram outros pensadores é um estar com o outro. Um estar prazeroso que se dá nesse entrecruzamento de subjetividades. Nessa linha, ler é um ato de escuta, ao ler, escutamos o que cada personagem e narrador tem a nos dizer, deparamo-nos com um mundo diverso, cheio de personagens, histórias singulares, vivências, experiências marcadas por um tempo que não vivemos e nem experimentamos, não daquele jeito. Entramos no mundo da alteridade, onde se convive com as diferenças.

Através da leitura, somos levados para o mundo da ficção, uma invenção do autor, uma realidade que nos leva a entrar em contato com as histórias que, como diz Alberto Caeiro: “a beleza é o nome de qualquer coisa que não existe. Que dou às coisas em troca do agrado que me dão”. A despeito desse comentário do poeta (cada um interpreta à sua maneira), aqui pensamos que há uma alegria por oferecer um agrado de ser agradado. Alberto Caeiro, em suas narrativas, muitas vezes solitárias, traz dores, alegrias e experiências, que comparamos às nossas e assim saímos do nosso espaço e tempo, comparando “aquele mundo” com o nosso.

As obras, em geral, trazem um contexto histórico e social em que os personagens se inserem, expressando-se na construção do estilo, da narrativa, elementos da sociedade e cultura do seu tempo. Assim, convocam o leitor a ampliar o seu horizonte interpretativo, o que depende do quanto ele consegue alcançar este universo ficcional do escritor através da leitura particular. Isto posto, podemos inferir que o ato da leitura é determinado pelo diálogo estabelecido entre leitor e obra.

Ricouer (2010, p.132): “O que é comunicado é, em última instância, para além do sentido de uma obra”.

O campo imagético do leitor não lhe impõe limites, os acontecimentos dos romances, novelas, contos, crônicas e poemas costumam ser verdadeiros convites para devaneios, passeios e reminiscências de um tempo vivido próximo ou apenas desejado.

O eu desbrava a literatura e a psicologia/psicanálise desbrava o eu. Ambos podem auxiliar nos processos terapêuticos para o autoconhecimento. No campo interno dos sujeitos e da literatura, surgem os desejos, compulsões, angústias, ansiedades, manifestações inconscientes e outros, podendo vir à tona nas sessões de terapia por meio da linguagem falada ou corporal. Ao ler, o sujeito cria repertórios para as próprias construções simbólicas, que ajudam a dizer aquilo que precisa ser dito para estar mais diretamente em contato consigo, acessando seus mais variados sentimentos. A psicologia/psicanálise entra nesse emaranhado de acontecimentos exatamente neste instante, quando o leitor desperta para a própria vida, para as próprias experiências, quando vê sua subjetividade espelhada nas emoções contidas nas narrativas do livro.

Gaston Bachelard (2003) descreve que muitas vezes o leitor depara-se com o sentimento de que aquele livro poderia ter sido escrito por ele, ou que o livro é a sua própria biografia. As palavras fazem eco na história de vida de quem lê, a relação estabelecida está para além de leitor e livro. A relação se transforma pela imaginação do leitor através de seus recursos afetivos.

A psicologia/psicanálise no chama a compreender as emoções e a literatura nos convida a percorrer a obra, seja ela qual for, a partir de nossas próprias emoções. Um leitor diante de um livro não é um mero visualizador de palavras, ele é tocado e afetado por elas. Assim como as psicólogas e psicólogos/psicanalistas, nos consultórios, são convidados a participar do mundo e do tempo do outro e são afetados por ele. Para além disso, na terapia, os profissionais estão preparados para serem tocados por palavras, surpreendidos pela trama, transportados por imagens do universo do outro que imprimirá em nós a experiência na totalidade existencial de quem nos conta a história, de cada “autor” que decide sentar-se em nosso divã.

Em uma dimensão subjetiva, na psicologia (linha psicanalítica), convida-se as pessoas a viajarem pela mente, expandindo as possibilidades de simbolizar situações relacionadas à suas vidas, onde às vezes não encontram o seu sentido, podendo haver uma dispersão de si mesmo. Dessa forma, encontros terapêuticos provocam os pensamentos que são ditos nas sessões, levando uma descoberta de afetos na intenção de se aproximar melhor de si, de se conhecer.

A literatura também provoca o sujeito a entrar em contato com suas fantasias, ampliando o campo imagético, trazendo novas formas de vivência e um convite a novas relações com o eu. Freud, ao desenvolver sua teoria, acessa a literatura e assim a psicanálise é tocada por esse gênero. Citaremos aqui, algumas obras: Goethe, Schiller, Hoffman, Shakespeare e Sófocles, este que acabou servindo de base para a elaboração da teoria do Complexo de Édipo, conceito fundante da obra freudiana.

Dessa forma, entrecruzamos essas linhas na psicanálise de Freud, vagando entre as possibilidades de correlacionar a literatura e o real. O que dizer dos caminhos imaginativos que a história de vida das pessoas não possibilitou, mas a leitura entra na função de projetar?

Em “O delírio dos sonhos, na Gradiva” I Freud (1907/2005, p.19): “‘Gradiva’”, ‘aquela que anda’; ele fantasia que certamente ela é filha de uma casa nobre, talvez edil pertencente ao patriciado, que ‘executava seu trabalho sob os auspícios de Ceres’, e que se acha a caminho do templo da deusa.”

Não é a ideia explicar o texto escrito por Freud sobre o romance publicado por Wilhelm Jensen, em 1903. Esse texto apresenta um resumo da teoria dos sonhos, um delineamento da teoria das neuroses e explica pontos sobre os delírios. O que se quer é ilustrar que esse campo do saber (literário) interfere no inconsciente, ilustrando a importância de uma narrativa poética para se explicar uma fantasia que pode estar no imaginário coletivo e desencadear memórias do passado. Nesse trecho Freud expõe o seu lado narrativo, procurando desvelar a alma humana.

“Os psicólogos não sabem tudo. Os poetas trazem outras luzes a respeito do homem.” (Gaston Bachelard).

Portanto, o domínio de um bom repertório literário desperta na dupla (psicólogo e paciente) a sensibilidade para entender distintas situações existenciais, dando um sentido à relação espaço-tempo, vida-morte.

Referências

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, ed. 2003.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. In Vol. 1 – A intriga e a narrativa histórica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

FREUD, Sigmund. (1906-1909) – O Delírio e os sonhos na Gravida e outros textos. In Obras Completas [tradução Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, vol. 08, p. 19.


Renata Temps é psicóloga, mestre em Psicologia Social – PUC-SP, professora de Psicologia Fenomenológica Existencial na Faculdade Pitágoras (Jundiaí-SP), professora de Português como Língua de Herança e professora de Português para Estrangeiros (Atlanta, EUA).

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