O brincar no processo da psicoterapia

Uma ponte entre o mundo interno e o externo, o brincar possibilita expressão criativa e elaboração simbólica dos conflitos. É um meio de abrir novas vias para a consciência, especialmente quando as palavras falham.

Ao iniciar um processo de psicoterapia, muitas pessoas esperam a definição de um método rigoroso e acabam se adaptando ou não ao que o(a) psicólogo(a) tem a oferecer. Algumas abordagens terapêuticas, no entanto, fogem desse rigor, criando uma miscelânea de teorias que são aplicadas de maneira superficial durante as sessões. Esse afastamento das bases científicas pode, em alguns casos, aproximar-se do campo do aconselhamento prático — algo que se alinha com a ascensão dos coachs, que, embora populares, raramente oferecem uma compreensão profunda dos processos psíquicos.

A superficialidade de muitas dessas abordagens alternativas pode ser prejudicial. Nem todos os pacientes têm a capacidade de acessar, por meio de técnicas simplistas, os registros fundamentais da experiência humana, como a complexa relação entre o imaginário, o real e o simbólico. Além disso, o coach frequentemente trata questões psíquicas de forma banal, impondo soluções imediatistas e práticas que desconsideram a profundidade e a singularidade do sujeito. Isso contrasta com o processo terapêutico adequado, onde a elaboração dos conflitos internos requer mais do que a mera execução de tarefas ou metas externas.

É nesse contexto que o brincar, aliado à elasticidade da técnica, pode ser visto como um recurso valioso no processo psicoterapêutico. Sándor Ferenczi (1927/2022, p. 30) descreve a psicanálise como algo muito mais elevado que a simples aplicação de técnicas: “Na análise, trata-se de apreender a tópica, a dinâmica e a economia do funcionamento psíquico, e isso sem a impressionante aparelhagem dos laboratórios, mas com uma pretensão de certeza sempre crescente e, sobretudo, uma capacidade de rendimento incomparavelmente superior”.

Isso sugere que a natureza dinâmica da psicoterapia vai além de um conjunto rígido de regras; é um campo aberto à reformulação constante, sensível às necessidades que emergem do encontro com o paciente, levando em consideração a singularidade de cada caso. Ferenczi (1927/2022, p. 36) também reforça a importância dessa abertura teórica: “A confiança em nossas teorias deve ser apenas uma confiança condicional, pois, num dado caso, talvez se trate da famosa exceção à regra, ou mesmo da necessidade de modificar algo na teoria vigente até então”.

Esse olhar flexível permite uma escuta ativa que se adapta à singularidade de cada pessoa e situação, produzindo uma prática que não se reduz a eixos fixos. E é justamente por isso que, em muitos casos, o brincar se torna imprescindível nas sessões. Para pacientes que enfrentam dificuldades em simbolizar ou em realizar representações mentais, o brincar oferece uma via alternativa para a elaboração dos seus conteúdos internos. No entanto, essa brincadeira deve ser cuidadosa, estruturada por meio de jogos inventivos ou materiais que estimulem o paciente a refletir sobre determinados temas, facilitando uma inscrição psíquica capaz de modificar seus processos internos.

Winnicott (1971), em O Brincar e a Realidade, argumenta que a capacidade de brincar não é apenas um indicativo de saúde mental, mas uma parte essencial da vida humana. Ele destaca que o brincar cria uma ponte entre o mundo interno e o externo, possibilitando uma forma de expressão criativa e de elaboração simbólica dos conflitos. Assim, a brincadeira na psicoterapia não é apenas uma técnica lúdica, mas um meio de abrir novas vias para a simbolização, especialmente quando as palavras falham. Isso nos leva a refletir: estamos prontos para incorporar a leveza do brincar como uma ferramenta profunda de transformação, ou ainda estamos presos à rigidez interna?

Referências

FERENCZI, S. (1928). Elasticidade da técnica psicanalítica. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 30-36. (Obras completas Sándor Ferenczi, 4).

WINNICOTT, D. W. (2019). O brincar e a realidade. São Paulo: Ubu Editora; 1ª edição.

Crédito da imagem: “Espantalho”, Paul Klee, 1935.

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.