O novo sendo vivido com velhas formas de viver

A situação tem saído do controle e ao mesmo tempo é limitante

Lives, filmes, séries, trabalhos, cuidados com a casa, cuidados com os filhos, compras, higienização, álcool em gel, máscaras, planilhas orçamentárias, faltas: de dinheiro e de coisas. Muito presentes, aqui, as compulsões: por cigarros, vinhos, cervejas, substâncias químicas, pizzas, lasanhas, tortas, bolos, bebidas, chocolates, e tantas outras coisas.

Peço licença, pois não contextualizarei, ao extrair um pequeno trecho do livro de Erasmo de Roterdã, Elogio da Loucura: 

O vil escravo do monarca, quando não deva fazer a corte ao senhor (pois nesse caso se levantaria ao primeiro canto do galo), costuma dormir até ao meio-dia, e, mal desperta, o mercenário capelão, que já esperava por esse momento, resmunga-lhe às pressas uma missa. Em seguida, passa a cuidar do almoço, e daí a pouco, do jantar, ao qual sucedem imediatamente os jogos de dados e de xadrez, os bobos, as cortesãs, os divertimentos inconvenientes e todos os outros prazeres chamados passatempos. Esses devotos exercícios não se fazem sem uma ou duas merendas; depois, vem a ceia, e se passa a noite no meio das garrafas. E assim, sem pensar que se nasce para morrer, a vida passa rapidamente. As horas, os dias, os meses, os anos, os lustros transcorrem para eles sem nenhum aborrecimento, como um relâmpago.

Esse trecho remete aos dias atuais e aos “escravos” em isolamento social ou em quase isolamento. Num frenesi as pessoas andam servindo a própria monarquia, além da corte aos senhores empregadores.

A recorrência angustiada para se ter prazer parece cansativa.  

Freud (2010, p. 179): Sem dúvida, a resistência do Eu consciente e pré-consciente está a serviço do princípio do prazer, pois ele quer evitar o desprazer que seria gerado pela liberação do reprimido, e nós nos esforçamos, apelando ao princípio de realidade, para conseguir a admissão desse desprazer. 

Esse reprimido se refere ao recalcado, isto é, algum sentimento escondido que se vier à tona pode nos fazer sofrer muito por não sabermos lidar, dessa forma, fazemos nesse momento, a qualquer custo, de um tudo apelando para não ter desprazer. Recorrer as mesmas coisas de sempre pode ser a chave do não ter o prazer. Tempo de entrar em contato com a dor e tentar se organizar, nesse novo encaixe difícil de acomodar. Talvez agenciar as vontades e escolher melhor a quantidade enorme de estímulos que vem do externo (comer de vez em quando). Metaforicamente e fisicamente a prática de andar em seu espaço devagar sentindo os passos com mais plenitude, olhar o céu com mais atenção, ver em sua janela que tem outras cabeças pensando coisas, ler aquele livro se transportando no tempo, ouvir alguns sons do mundo externo e simplesmente olhar o nada, pode ser o princípio do prazer do seu novo modo de existir e encarar a pandemia. Também, um pouco de loucura faz bem. Me refiro aqui a experimentar pensamentos um pouco invertidos (pode gritar de vez em quando na janela do seu prédio). 

Me cansei de lero-lero
Dá licença, mas eu vou sair do sério
(...)
Apesar, contudo, todavia, mas, porém
As águas vão rolar, não vou chorar, não!

Rita Lee

Referências

ROTERDÃ, Erasmo de. Elogio da loucura. 1509. eBooksBrasil, 2002.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. 1920. São Paulo: Cia. das Letras, 2014.

Letra da música: LEE, Rita. Saúde. São Paulo: EMI: 1981. Spotify. (5:01). Acesso em 18 abril 2020.

Crédito da foto: Yosef Morenghi, 2015.

10 comentários em “O novo sendo vivido com velhas formas de viver”

  1. Muito bom. Coloca a gente pra pensar realmente no nosso interior. E as vezes nos assustamos com o que encontramos. Temos que aprender a lidar com esse eu verdadeiro. Parabéns Mirian.

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  2. Refletindo um pouco, sempre fui adepta do isolamento social pois amo a solitude, porém sem restrição da liberdade. Mas o que é liberdade no sistema capitalista?

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    • O que é liberdade? Globalizado está o vírus? Tempos novos… Mas o que é liberdade na dimensão subjetividades capitalística? Um freio em época de corona vírus? Quem precisa desejar a roupa mais brilhante e linda ? Você tem sede de que?

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    • Agenciamentos subjetivos capitalistas. Acho que os atravessamentos não nos deixam alternativas e as escolhas são sempre atravessadas pela grana que ergue e destrói coisas belas, no entanto, há beleza na busca da liberdade de expressão mesmo que cerceada .

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