O impacto da digitalização nas relações interpessoais
Os seres humanos são geneticamente programados para viver em sociedade, integrar grupos e compartilhar experiências. No entanto, à medida que avançamos em um mundo cada vez mais digitalizado, um paradoxo inquietante emerge: estamos nos afastando dessa natureza social? A era digital, ao mesmo tempo que amplia nossa conexão com o mundo, parece nos distanciar do contato humano imediato, favorecendo um individualismo extremo e esvaziando as interações presenciais.
Essa transformação não ocorre de maneira isolada, mas dentro de um contexto mais amplo de mudanças nas formas de interação. Dia desses eu ouvi o neurocientista Álvaro Machado Dias, que observou que o Ocidente atravessa um processo no qual a paciência para lidar com a subjetividade alheia está diminuindo, enquanto o contato com agentes baseados em inteligência artificial cresce exponencialmente. Se antes as relações humanas envolviam uma certa disposição para lidar com a complexidade do outro, agora muitos preferem diálogos mediados por máquinas, que oferecem respostas rápidas, previsíveis e sem fricções emocionais. Isso gera um paradoxo interessante: nunca estivemos tão conectados digitalmente e, ao mesmo tempo, tão incapazes de suportar a presença e as imperfeições do outro (Dias, 2025).
Esse fenômeno se manifesta no cotidiano. Pequenos gestos, como agradecer, ouvir atentamente ou simplesmente esperar pelo outro, estão desaparecendo. A intolerância à frustração cresce, e divergências que poderiam ser oportunidades de aprendizado e negociação rapidamente se transformam em conflitos. O psicanalista Christian Dunker (2015) analisa essa questão a partir da metáfora dos “muros” contemporâneos, que não são apenas físicos, mas também subjetivos. Os condomínios fechados, que isolam socialmente os indivíduos, refletem um modelo de fechamento mental e emocional, no qual a rigidez identitária substitui o diálogo, e a diferença passa a ser vista como uma ameaça.
Sigmund Freud, em O mal-estar na civilização, reflete sobre o instinto de agressão como derivado do instinto de morte. Ele aponta que indivíduos excessivamente egoístas, que priorizam apenas a si mesmos e rejeitam laços afetivos, podem estar mais influenciados por essa pulsão destrutiva (Thanatos). A consequência não é apenas a solidão, mas uma nova forma de sofrimento psíquico, marcada pelo esvaziamento da experiência relacional (Freud, 1930, p. 90-91). Onde há relações em que a conexão e a cooperação são possíveis, Eros é a maior influência, é a pulsão que nos leva à criação de vínculos.
Apesar desse cenário, há formas de resistência. Pequenos grupos ainda cultivam interações autênticas, resgatando valores como empatia, escuta ativa e solidariedade. A tecnologia, embora contribua para o isolamento, pode também ser um instrumento de aproximação, desde que utilizada para fortalecer vínculos em vez de substituí-los. Como Álvaro Machado Dias sugere, o futuro das relações humanas dependerá de nossa capacidade de equilibrar a eficiência tecnológica com a riqueza da subjetividade. O desafio, portanto, não está apenas em resistir à fragmentação das relações, mas em reconstruir formas mais saudáveis de convivência, onde a individualidade não seja sinônimo de distanciamento, mas de presença consciente.
Referências
DIAS, Álvaro Machado. Tendências do Ocidente e o futuro das interações humanas. Curso ministrado online no CasaFolha. Disponível em: https://casafolhasp.com.br/ Acesso em: 13 de fevereiro de 2025
DUNKER, Christian Ingo Lenz. O mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Obras completas, v. 18. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Crédito da imagem: “A Madona do vilarejo”, Marc Chagall, 1938-1942.
Ótima reflexão.