Sonhos registrados

Na clínica, em tempos de covid-19, escutam-se relatos de sonhos dos mais variados que vão desde morte, sair na rua sem máscara, guerras, galáxias, até o aparecimento de criaturas nunca vistas antes

Eles podem ser descompassados, desconexos e confusos para o sonhador. Segundo Freud, a atividade onírica pode ser a realização do desejo ou uma tela onde se reproduzem fatos reprimidos do inconsciente. Ainda, Roudinesco (Kindle posição 24111 de 31967) diz sobre o sonho: Fenômeno psíquico que se produz durante o sono, o sonho é predominantemente constituído por imagens e representações cujo aparecimento e ordenação escapam ao controle consciente do sonhador. Completamos com Junior (1989, p. 51): Além disso, segundo Freud, os símbolos aparecem como “elementos mudos” no sonho e para os quais o sonhador não consegue fornecer associações.

Para dialogar sobre sonhos, vou ilustrar com alguns trechos de relatos reais:

Um paciente que chamarei aqui de Noel conta na sessão de terapia:

Ela e sua mãe tentavam pegar carona e estavam num barranco, carregando sacolas grandes. Mas não aparecia ninguém que oferecesse essa carona. Estava difícil. Do outro lado da rua, Noel observou que tinha um homem com um corvo numa coleira, como se fosse um cão guia para cegos, mas ele não era cego. Noel, sim, estava acompanhado da mãe e de um homem cego.

Simplificando muito a interpretação (por meio da livre associação) e considerando a história do paciente, sob a batuta da teoria freudiana, pudemos constatar que Noel levava muitas sacolas de situações traumáticas infantis, aqui especificamente o assassinato de uma parente próxima que fora esquartejada, na porta de sua casa, e ficou evidente que sofrera de violência sexual. O sonhador não entendia o que houve naquele dia fatídico e ninguém na época dialogava e explicava. A carona não vinha (no sonho) e o impedia de chegar ao seu destino (entender o que aconteceu). Melhor não ver (cegar) e esquecer, pois os pais o repreendiam se quisesse falar no assunto.

O corvo numa coleira.

Oh Deus! Quem me dera eu esquecê-lo:
Segundo disse (ora vem-me à lembrança,
Como o corvo a uma casa de doenças,
Como mau agouro) o lenço está com ele.

Otelo,
William Shakespeare

Aqui o sonho permite o acesso ao inconsciente e mostra a cegueira das figuras parentais que não conseguiram conversar com o pequeno Noel sobre a tragédia. Ele presenciou tal tormento e teve que tirar suas próprias conclusões, causando-lhe angústias. Quando rememorada, essa história se alivia um pouco partindo para a próxima fase: da elaboração.

Vamos para mais um sonho: O que dizer do “pesa sonho”? O nome foi dado por uma criança que relata as imagens que lhe passam na mente durante o sono.

Os pais estavam numa igreja abandonada e iam se casar.

A mamãe entrou para encontrar com o noivo no altar. As crianças estavam num cantinho e ela via faíscas de fogo e, dali a pouco, veio o fogo, sua mamãe tentou puxar o papai, mas ele ficou lá dentro em meio as labaredas.

Ela berra para os convidados salvarem o pai.

Uma moça que saiu de dentro da igreja disse que o papai morreu.

A pequena sonhadora não acreditou e a mãe disse que elas deveriam se acalmar e ir embora para tomar banho.

A menina disse: “nada de banho”. E insistiu, voltou para o lado da Igreja e avistou o pai saindo machucado cheio de arranhões, mas bem vivo.

Novamente um comentário pormenorizado, mas que, talvez, nos ajude a entender a importância do sonho. A menina trouxe à tona várias sensações e conseguiu ter uma conversa com o pai, que falou abertamente sobre seus machucados: o pai nesse momento atravessa um tratamento de câncer e a covid-19 não pode interferir. Inclusive o pai conseguiu esclarecer para ela que o tratamento vai bem, apesar dos arranhões causados pela quimioterapia.

Recorremos após esses trechos reais a um pensamento de Freud (2009/1900, pg. 318):

Os pensamentos oníricos são compreensíveis assim que deles tomamos conhecimento. O conteúdo onírico é fornecido numa espécie de pictografia, cujos signos devem ser transpostos para a linguagem dos pensamentos oníricos. Evidentemente, nós nos enganaríamos se lêssemos esses signos segundo seu valor como imagem e não conforme sua relação semiótica.

As cenas simbólicas aparecem durante essa atividade onírica. É possível desvelar as imagens perturbadoras e aquelas de alegria transbordante; todavia, a leitura do sonho, na maioria das vezes, não pode ser literal e nem pode ser confundida com premonições, o fato é que há uma mensagem do próprio eu para ser desvelada.

Terminamos com o trecho de um relato de uma sonhadora de nome Noeli que conseguiu ir para as estrelas e viajou o universo conhecendo planetas muito interessantes, onde aconteciam festas eletrônicas, com LSD não nocivo à saúde e os extraterrenos lhes davam boas-vindas.

Ela se sentiu revigorada no dia seguinte pois sua mente lhe tirou da prisão do confinamento e assim relata que colocou uma música e fez sua própria festa em casa, o sonho da realidade.

Vale uma proposta: criar o caderninho dos sonhos para registrar suas impressões, descobrir um mundo de imagens que podem ser decifradas e como não lembrar, Friedrich Nietzsche: “Nada lhe pertence mais que seus sonhos.” Bons sonhos!

Referências

ELYSEU JR, Sebastião. Mecanismos de defesa do ego na formação do sonho. 2ª. edição. Campinas, SP: Papirus, 1989.

FREUD, Sigmund. (1900). A interpretação dos sonhos. São Paulo: Cia. das Letras, 2019.

ROUDINESCO, Elisabeth.; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. (Locais do Kindle 24111 de 31967). Edição do Kindle.

SHAKESPEARE, William. (1604). Otelo. São Paulo: L&PM Pocket, 2007.

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1 comentário em “Sonhos registrados”

  1. Boa proposta! Lembro que os sonhos em mim foram mais intensos e quase “reais” quando nos primeiros dias de internações. Havia uma ligação direta com os meus transtornos. Eram em formas de “pesadelos” mesmo. Atualmente é mais raro eu lembrar dos sonhos, porém um “cardeninho de sonhos” é uma boa ideia.

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